Por André Cervinskis
O processo de personificação lírica desenvolvido por Lucila Nogueira inclui recursos dramáticos monologais que navegam desde a atmosfera clássica a um contexto de performance pós-moderna. Voz e performance se conjugam para a enunciação mítico-feminista da autora, sendo sua personalidade traço fundamental da sua poesia.
A autora segue a trajetória Oretania/Levante/Galiza/Bretanha/Escandinávia proposta como fio condutor de busca da origem étnica e artística de Lucila Nogueira através das figurações femininas alegóricas de que se utiliza na formação de vozes ancestrais e contemporâneas a delinear a condição da mulher em várias épocas em confronto com o arquétipo feminino vital matriarcal de diversas culturas, na busca obsessiva de uma geografia mítica de si mesma.
Assim, seu discurso poético se sustenta a partir da formulação mítica que desdobra a voz lírica em alegorias que passam a conviver como estátuas vivas com o universo dos leitores desse fantástico imaginário da autora carioca radicada no Recife. A linguagem poética, expressa por um uso seqüencial de unidades submetidas a poucos paradigmas, insiste na representação dos mesmos elementos emotivos, os quais se intensificam pelo espelhamento interno também do significante. A mimese interna e ao aprofundamento da interiorização são especificações linguísticas e psicológicas peculiares ao gênero lírico. A função poética da linguagem, que projeta o princípio de equivalência do eixo da contiguidade, mostra que a estrutura do poema é uma das formas de representação da existência, segundo José Guilherme Merquior (apud HOFFMAN, 2001, p. 23).
Segundo o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (2ª reimpressão, 2010), da Academia Brasileira de Letras, performance é “execução cabal de uma função, de uma atividade ou de uma tarefa; desempenho ou cena em que os atores se apresentam por conta própria, fora do texto ou programa”. Embora essa definição seja pertinente, nesse projeto, pretendemos aprofundar seu conceito, para entender como essa ação de teatralização da voz se dá na obra da autora luso-brasileira. A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado.
Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes é um canto de tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.
Nesse livro, como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000).
Por sua vez, Amaya (2001) é um dos livros da teatralogia ibérica, que inclui Imilce (2000) e Ilaiana (1997). Nele, a escritora realiza um diálogo intercultural a partir de suas raízes galeo-lusitanas. Em Amaya (2001) a autora, impressionada na vida real com a descoberta de seu sangue galego, parte ao reconhecimento mítico e geográfico de si mesma. Faz o percurso ao contrário de seus ancestrais, no rumo que vai do norte de Portugal à cidade de Padrón, passando por outros sítios como Sanxenxo, Combarro, Finisterra. Imerge na cultura galega cercada pela paisagem dos hórreos e eucaliptos que sempre povoaram seus sonhos de infância, procura vivenciar o histórico e o psicológico da imigração dupla : da Galiza a Portugal, da Lusitânia ao Brasil. Recorre à figura real de Teresa Susabila, que se funde literariamente com a ficcionalizada Amaya, cuja personificação a autora chega a ponto de incorporar bordando esse nome em seu casaco de uso diário.
Ilaiana - Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do título da obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final. Esses dois últimos versos que inauguram e concluem o poema, completando sua estrutura cíclica e regressando à matriz temática (“A Dama de Elche”, mito da deusa-sacerdotisa da região da Galícia, Espanha). Ilaiana (1997), que completa junto com Imilce (2000), Ainadamar (1996) e Amaya (2001) a denominada tetralogia ibérica, em que a autora recorre a mitos e temas culturais luso-hispânicos, trata do mito da “Dama de Elche”, deusa-sacerdotisa do período pré-espanhol (celta). Com influências de mitos semelhantes, “em pedra talhada ou policromada, ricamente vestida e adornada, ostentando uma toucada – suas tranças?, elaboradíssima, ela tem o olhar fixo na eternidade. Preservada desde sua milenária existência, anônima ela e anônimo o seu criador. Pergunta a voz poética: fui a deusa e o touro subterrâneo/ Inanna Astarte Isis ou Cibele/ Uni Tanit fui Juno ou fui Demeter/ que nome me chamavam os iberos? (NOGUEIRA, 1997). Dessa forma, a voz da Dama de Elche perpassa toda obra, assumindo identidades múltiplas, traduzindo em versos o interculturalismo de sua obra:
E eu contemplei atônita o semblante/ da moça igual à dama na estação/ desceu em frente às águas de Alicante/ império de tartéssicas visões./ Mulher sacrificada na pirâmide/virgem sacerdotisa que foi mãe/ nômade – proletária – navegante/ que céu te despencou na corda vã? Grego ou cartiginês esse semblante/no trem com seus dois filhos pela mão/grega cartaginesa ou babilônica são de Creta ou da Síria essas feições? (Poema IV)[...] Foi aqui que eu plantei um CANDELABRO/ de Chipre e o consagrei à luz da lua/ meu pente de marfim veio de Samos/ e os fóceos esculpiram minhas tranças (Poema VIII) (NOGUEIRA, 1997, p. 18.22)
Mas a autora tem consciência plena de sua identidade, mesmo imiscuindo-se em inúmeras culturas, como demonstram esses versos: Esta ilha de ferro é meu RECIFE/ com seus guanches atlantes e tupis/ esta ilha é meu corpo e meu abismo/ meu poder de sonhar e de existir (NOGUEIRA, 1997, p. 25)
Já A Quarta Forma do Delírio (2003) trata dos mitos celtas da Bretanha, como os da Távola Redonda, Rei Artur e o Santo Graal. Resultado de uma residência artística realizada pela autora em Saint-Nazaire (França), em 1999. Região anteriormente dominada pelos celtas, o Norte da França, juntamente com a Ilha da Grã-Bretanha, desenvolveu toda uma cultura miscigenada, com elementos pagãos e cristãos, resultado da incursão do cristianismo em terras dos chamados “povos bárbaros’ na Idade Média. Com sensibilidade aguçada, a autora vai perceber tais influências, visíveis nos seguintes versos: (Esta era a escada dos druidas/ e eu sou a Veleda a druidesa/ meu canto tem poder/ de dissolver tempestade/ guardiãs do santuário de Teutates/ ninfa celta/ sacerdotisa armoricana/ imagem de Bretanha (Fala de Veleda); Ouve o canto da druida/solitária/ tu estás sob a minha/ proteção/ visão que eu atraí/armoricana/ eu me chamo Merlin/ o Encantador (Fala de Merlin) (NOGUEIRA, 2003, p. 41.44). Pois, como afirma Lourival Holanda na orelha deste livro:
Lucila cruza – no sentido fecundo – caminhos reais que agora dão uma outra gravidade à memória de seu imaginário poético. O impacto da praia rochosa de Saint Marc. Os caminhos imemoriais por onde nossas lembranças se cruzam: os índios brasileiros que por ali Montaigne recebeu. Hoje, é Lucila recebendo os eflúvios poéticos de celtas, de Carnac, da beleza bárbara da Bretanha.(NOGUEIRA, 2003 – orelha)
Finalmente, Estocolmo (2004) vem representar o fechamento do ciclo Mítico Performático, a partir de falas deambulatórias pelas ruas da capital sueca, que dialogam com vários tempos e personagens do século XVIII, culturas arcaicas desde os livros de Odin sobre as quais paira a alegoria da volva, figura emblemática que se confunde com a própria poesia em seu uso de sibilas para profetizar. Ao mesmo tempo, verifica-se que é um porto de chegada da autora, em sua odisséia pessoal, integrada nesse ano à comunidade sueca pelo nascimento de seu neto Alexander. A filha e neta de portugueses e galegos que se torna mãe e avó, no percurso de volta dos vikings que são referenciados em todo o livro, inclusive em suas vestimentas e visual punk pós-moderno.
Assim, podemos dizer que o discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance. As vozes femininas, sejam elas celtas, galegas ou escandinavas se transpõem para os livros de maneira tanto figurativa (metáforas e metonímias) quanto temáticas (vozes de mitos ancestrais que ecoam no inconsciente coletivo). O fundamental é que esta passagem do semântico para uma espécie de estado vital do significante, tal como a aparição de novos signos, seja adotada em várias religiões e mitos de iniciação (GLUSBERG, 1987), ambos bastante fortes em Lucila Nogueira. Já para Zaul Zumthor, autor canadense que aprofundou o conceito de performance para a cultura e especialmente a literatura, afirma que, se houvesse uma ciência da voz, ela não estaria centralizada em uma única forma de conhecimento, pois deveria abranger, em princípio, a fonética e a fonologia, além da antropologia, da História e da psicologia da profundidade. Em seu estudo, o teórico refere-se à voz do ser humano real, e não à do discurso, uma vez que o texto literário é uma voz que está dentro de um suporte escrito, portanto mediado ele já é uma representação.
Diretamente vinculada à voz poética, a performance é uma ação oral-auditiva pela qual a mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, no tempo presente, em que o locutor assume voz, expressão e presença corporal (física), enquanto o destinatário, que não é passivo, também se inclui como presença corporal dentro da performance. A lírica de Lucila Nogueira, reverberando o eco ancestral de mitos, enseja-se nesse panorama. Os cinco livros selecionados para esse artigo são repletos de elementos identitários tão diversos quanto a cultura ibero-galego-celta-escandinava. Embora plenamente enraizada no Brasil, suas inúmeras viagens a outros países ajudaram-na na concepção poética das vozes mitológicas das culturas tão diversas que hoje convivem local e globalmente, constituindo-se numa verdadeira geografia mítica pós-moderna.
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