Cortiços de uruçus, suspensos nas embiras atadas aos caibros, decoravam os trêsalpendres do chaléondeeu nasci. Nossamesa premiava-se com o melhormel de abelhas do mundo. Meupai fazia a colheita pertinho do Natal. O mel, emtom claríssimo e transparente, semelhava-se a umlíquidofeito de madrepérolas. A colheita, emvasilha de barro sobreposta por uma urupema (peneira de palha), com a finalidade de filtrar o produto e impedir a passagem do saburá (resíduo amargoso proveniente do pólen das abelhas) e de torrões de barroqueantes serviram de tapumes na vedação do cortiço.
A minha participação naquela hora, além de colaborarcom o meupai, tinha duas finalidades: a primeira, receber as bolas/favos (semelhantes a cachos de uvas roxas do Vale do São Francisco), saídas da colmeiatransbordante do inigualávelmel; a segunda, a cera de tonalidadepretapara o meuartesanato. Antes, porém, devolvia-se todo o saburá e parte da cerapara o interior do cortiço a fim de que as abelhas reiniciassem a novafabricação de mel. A Rainhalá estava paradar continuidade à produção. A matavirgem fornecia flores abundantes àquelesinsetosmelífluos.
A minhaalegriaeraincalculável. Com o bolo de cera nas mãos corria para uma tigelacheia d’água e lavava o material a fim de extrairqualquerresquício de melali existente. Depois a deixava numa tábua, cobertapor uma telafina e exposta ao solpara a devidasecagem. Não podia ter nenhuma aberturamaior, senão, as abelhas levariam tudo de voltapara o cortiço. Apósdoisoutrêsdias a cera estava seca. Momento de amaciá-la e entraremcenacom a minhainstintivaarteemfazerminiaturas de animais: vacas, touros, cavalos, cachorros, etc.
Havia na fazenda uma vacamuitobonitachamada Cocozinha. Era de quemeumais gostava de beberleite nas madrugadasincontáveis.
No meuartesanato imitei quasetoda a vacaria. E os touros, também: esculturei Damasco, Tarugo, Tupã, Aratanha e Mariola. Jangada foi outra copiada emcera e sempre lembrada pormim. (Aquela que morreu de parto,cujocouro esticado na baraúna provocou uma espontânea e belahomenagem de sentimentoirracionalemtodo o rebanho a gemer e babar, orquestradamente, aos pés daquela árvore expositora dos restosmortais de Jangada).
Quanto à Cocozinha, a coisa foi diferente, caprichei na miniatura: o feitio da cabeça, do traseiro, do pequeníssimo cupim, do úbere apojado, da caudalonga e daquele chifreesquerdobemmaistortoque o direito. A cópia ficou maravilhosa! Depois de seca, juntei-a ao minúsculorebanho e os guardei sobretábuas e cobertosporcuias de cuité (espécie de cabaça).
Achei porbem, num domingoensolarado, logoapós o famosocozidodominicalbrincar no alpendre das florescom o meuqueridorebanho de morenice uniforme.
Debaixo de uma frondosaavenca, ao lado do pé de jasmim de cera fiz a exposição do gado a pastar na manga (cercado) emfrente ao curral, tudo improvisado num quadrado de capimverde e cercas de sabugos demilho. Com o chapéu de palha espantava as abelhas intrometidas que chegavam atraídas peloagradávelcheiro da cera. Ao meio de tudo coloquei, emposição de furiosabriga, os doistouros: Tupã e Damasco. Umpanoramaencantador!
A brisa da tarde soprava abundantemente. O canário-da-terra na gaiola do alpendre executava no seuviolino de plumas as mais belas melodiasemgorjeios.
Coque e Gaúcho, cachorros da fazenda, roncavam no sonoprofundodepois da degustação dos ossos do cozido, sob a majestosasombra da calçadaondeeu brincava.
Meupai espichado na redeamarela tirava umronco no alpendre debaixo. Minhamãe, juntamentecom as quatro filhas falava sobre costuras na saletaque ficava portrás do localonde estava a minhaexposição.
Apóslongotempo de lazer e entretenimento, semmeaperceber, o sono dominou-me completamente e virei paraumlado ficando pormais de uma hora numa profunda e gostosasoneca. Acordei atarantado lembrando-me das abelhas. Deparei-me comumfestival de asas. A vacariabastante avariada, os touros, também. Damasco perdeu a cabeça e Tarugo, comapenastrêspernas, caído ao chão. Nadaquenão pudesse serconsertadocom o restinho de ceraemmeupoder. Quanto à Cocozinha restava apenasumpedaço do rabo e parte do chifretorto. A decepçãonãotinhalimites. Chorei copiosamente. O estoque de cera havia acabado e somente no próximoano seria reabastecido. O quefazer? Naquela noitenão dormi: ficarsem Cocozinha nãoerapossível. Diaseguinte tomei uma resoluçãoimediata: fui ao barreiro trouxe umbolo de argila e fiz outravaquinhasemelhante à anterior. Pus ao solparasecarsemperigo de ser roubada pelas uruçus. Nãotinhaumfornoapropriadopara cozinhá-la, apelei mesmopara a secagemnatural. Ficou uma beleza! Guardei-a junto ao rebanho de cera tendo o máximocuidadoparanão quebrá-la. Erabonita, mas, crua e frágil.
Continuei a brincar do mesmojeito, embora, prevenidocom o sono. A vaquinha de barro, emtomamarelo/ocre destacava-se das demais: aumentava o meu pegadio porela.
Chegou o mês de junho. O invernorigoroso enchia de satisfação os corações de todos os agricultores. Numa tarde daquele mês o sol reapareceu exuberante. Corri para o quarto das celas e trouxe o meugadoparabrincar no alpendre das flores. Fiz a exposição incluindo Cocozinha bem na frente da calçada. Ficou uma beleza! Brinquei à vontade, construí meuscastelos de areia: imaginei-me dono de umrebanho de verdade. Haja sonho de criançacampeira! De repente, uma fortechuva de recuada, juntamentecommuitaventania molhou tudo. O gado de cera salvou-se. Cocozinha simplesmente desmanchou-se: virou argilamole, novamente. Pus as mãos na cabeça e comecei a chorar. Meupai vendo-me naquela aflição aconselhou-me a esperar a novatiragem de melemdezembroparaqueeu fizesse outravacaaindamaisbonita. Conformei-me com o conselho dele.
Emdezembro, a verdadeira Cocozinha estava de bezerronovo. Boa de leite foi emprestada a umtiomeu e levadapara uma cocheira na cidade a fim de suprir a casa do estimado irmão de meupai.
No verão as vacasleiteiras carecem de uma raçãoextraparaque a produção de leitenão diminua.
A mandioca, bemcomo as manivas (caules) é uma excelentealimentaçãopara o gado, porém, não se pode servi-la no diaemque a colhemos. A manipueira, líquidovenenoso da mandiocasó perde o efeitonocivoapós vinte e quatrohoras de colhido o produto e triturado commarretas de madeiraparaque o gado possa comer no diaseguinte, comsegurança.
Aconteceu uminfortúnio: Cocozinha, no primeirodia na cidade, recebeu do tratador de gado do meutio, o cocho repleto de manivas e mandiocas manipeba (a maisvenenosa), recém-colhida e cortada de facapara a ração do dia. A vacanão terminou de comer o volumetodo e caiu arquejando e revirando os olhos, enquanto a barriga dilatada dificultava a respiração: morreu empoucotempo.
A notícia chegou à fazenda causando umsentimento de perdainacreditável.
Nuncamais fiz outra Cocozinha nem tomei leitetãogostosocomoantes...
As vaquinhas de cera e de barro queriam dizer alguma coisa.
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